quarta-feira, 10 de junho de 2009

A Viagem

Num espantoso conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, intitulado "A Viagem", um casal perde-se e procura o caminho certo, percebendo que não pode voltar de novo às encruzilhadas onde escolhera um dos caminhos. É uma viagem "parábola" da nossa vida em que procuramos, tantas vezes, agarrar o que já passou.

No final do conto, quando percebe que tudo vai perder, a mulher já sozinha diz:

"Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar."

"Um homem e uma mulher fazem uma viagem, que poderia ser a viagem da vida.
Percorrem uma estrada e ao chegarem a uma encruzilhada escolhem um caminho, mas a meio desse caminho notam que se enganaram e tentam regressar à encruzilhada, mas já não a encontram e decidem continuar em frente... Chegam outra vez a uma parte da estrada em que têm de optar por uma colina com àrvores ou uma planície e resolvem subir a colina para poderem avistar todos os caminhos e encontrarem o certo para chegarem ao seu destino.
Ao chegar lá avistam um homem e perguntam-lhe pela encruzilhada. O homem diz para esperarem um pouco que logo lhes indicava o caminho. Enquanto esperavam pediram ao homem que lhes indicasse onde podiam beber água. Quando voltaram da fonte, já o homem não estava lá. Decidiram voltar para o carro e ir na direcção que o homem lhes tinha indicado, mas quando chegaram ao lugar onde estava o carro já este havia desaparecido. Resolveram voltar ao lugar da água mas a fonte também já não existia.
Seguiram a estrada e passado algum tempo encontraram uma casa, bateram á porta três vezes porque embora ninguém abrisse eles ouviam vozes dentro da casa. Acabaram por arrombar a porta mas não estava lá ninguém muito embora estivesse o lume acesso e a roupa estendida no arame.
Decidiram voltar à estrada, mas a estrada já não existia, regressaram à casa mas esta tinha desaparecido. A mulher já estava desesperada e cansada, mas o homem insistiu para continuarem.
Várias coisas encontraram pelo caminho mas quando voltavam atrás para ir buscá-las já estas haviam desaparecido.
Chegaram à floresta, encontraram um lenhador que lhes indicou um caminho que mais uma vez não encontraram e quando voltaram para trás e também o lenhador já não se encontrava. Tentaram de novo encontrar a estrada, e mesmo perdidos um sentimento de felicidade tomou conta deles.
Encontraram um rio onde nadaram muito, repousaram naquela terra que se parecia tanto com a terra para onde iam...
Resolveram retomar a longa caminhada e começaram a ouvir vozes mas estas distanciavam-se à medida que eles se aproximavam até deixarem de ouvi-las.
Chegaram ao fim da floresta, já era noite e não havia luz nenhuma a não ser a das estrelas, e aperceberam-se de que estavam perto de um abismo, tentaram seguir um carreiro que havia rente ao abismo mas o homem escorregou e deixou de responder à mulher. Esta tentou seguir o carreiro para procurar o homem, quando já não havia passagem tentou descer o abismo mas não havia como descer e apercebeu-se assim que já não tinha como sair dali e que acabaria por cair..."

O conto “A Viagem” configura-se precisamente como uma alegoria da vida humana e do modo como as pessoas têm de escolher um caminho, ou melhor, como têm de FAZER elas próprias o seu caminho. Através de uma belíssima alegoria Sophia apresenta-nos todos estes problemas no seu conto A viagem. Nele um casal que vai numa estrada é constantemente confrontado com o desaparecimento dos caminhos. Ambos pedem indicações e ajudas mas essas pessoas também desaparecem. Os dois pensam que se enganaram, voltam atrás, tornam a avançar por outros caminhos. Até que chegam a um abismo — simbolicamente o fim da viagem e, portanto, a morte. O homem cai e pouco depois também a mulher irá cair no precipício. Mas, mesmo nesta situação limite a mulher pensa:
— Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.
Dois temas dominantes se degladiam neste conto: o absurdo e a esperança. No final, vence claramente a esperança. Deste modo, este conto contém uma lição sobre como lidar com o ABSURDO da vida : pressupõe a atitude do crente, de quem acredita que existe alguém depois da morte, mas também demonstra aquilo que Sarte dizia: “não é necessário ter esperanças para fazer”, para criar.
Mesmo perante a falta de sentido que a vida, muitas vezes, nos oferece, o homem tem de inventar a si próprio, tem de criar o seu caminho – tem de inventar o amor porque não há amor já feito.
Eis porque é fundamental essa outra ideia-chave do existencialismo que é a acção.

Também a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen remete o homem para um espaço utópico (ideal e impossível) comparável ao lugar procurado pelo casal que protagoniza o conto alegórico 'A Viagem'.
Eis o lugar ideal para o casal que protagoniza o conto:
"Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.”
Sophia de Mello Breyner - "A Viagem"

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